Thursday, September 15, 2011
Teatro de mentiras
Por motivos familiares, ela nunca fez suas próprias escolhas. Flocos era seu sorvete favorito, pois sua mãe sempre dizia que era mais gostoso. Não gostava de refrigerante, pois alimentos que não são saudáveis não têm lugar em sua casa. Seus horários eram tão regrados que às vezes esquecia de respirar, já que não estava escrito na agenda a hora para viver.
Ele sempre teve medo de ser quem era. Desde cedo foi desencorajado pelos amigos quando disse que queria escrever poemas e desestimulado pelos pais ao ler livros que não estivessem em sua grade curricular.
E todos os dias cruzavam um pelo outro, mas nunca proferiam uma palavra ou lançavam um olhar. Viviam uma vida solitária ainda que tivessem amigos. Só não tinham amizades verdadeiras, pois nunca eram pessoas verdadeiras. Não porque tinham um vício incontrolável de mentir, ou um medo terrível de mostrar o que é real, apenas porque não conseguiam ser quem realmente eram.
Discriminados na infância, passaram a juventude fingindo ser o que nunca foram. Ela tomava sorvete de flocos e ele lia poemas Shakespearianos escondido debaixo das cobertas. Aos poucos foram construindo personalidade própria, porém secreta. Separadamente sentiam o mesmo empecilho: Viver uma vida que não era sua.
Com a força do destino ou por pura coincidência - nunca chegaram a um consenso, porque ele, romântico, acredita em destino, e ela, cética e realista, abomina essa concepção - seus caminhos encontraram-se. Foi instantâneo, ela enxergou a realidade dele, e ele encantou-se com a ficção dela.
Quando se viam, uma ponte sólida e invisível era automaticamente construída entre eles. Ninguém sabia o que eles tinham juntos, eram discretos e espertos. Haviam passado a vida inteira criando personagens, seria muito fácil enganar os espectadores. Afinal, a platéia iria chocar-se com a troca súbita de personagens. Não podiam simplesmente tirar a maquiagem e a fantasia que vestiam, pois todo espetáculo iria perder-se. Assim, decidiram continuar com a atuação, no entanto, ao fechar das cortinas, nada mais eram que duas almas despidas.
No escuro das coxias, esqueciam-se de qualquer personagem, qualquer mentira ou ficção. Escondidos de qualquer um que pudesse criticar a verdadeira essência deles, continuavam encontrando-se esporadicamente nos lugares estratégicos daquele teatro. Ela encantou-se com a sinceridade dele, e ele viu o coração dela.
Gargalhavam com as peças que haviam pregado, e sorriam com os olhares capturados. Viviam como foras-da-lei. Aquela lei que impede que se mostre por completo, que seja quem realmente é. Viviam assim, em um universo particular, o único lugar que podiam ficar a vontade sem medo da crítica dos que assistem.
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Adorei, sério. Amo essas coisas que permitem múltiplas interpretações...
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