Tuesday, May 6, 2014

Medo do escuro

      Ela estava fora, só. Tudo escuro, mas não o suficiente para cegar. Apenas escuro pelo cair da noite, nada assustador. Não, a ausência de luz não assustava, o que causava arrepios era o silêncio. Podia ouvir os pelos de seu braço eriçarem, escutava claramente o tambor em seu peito, tão alto que tornava-se incoerente temer o silêncio. No medo tinha tambor, então não havia silêncio. No silêncio havia medo, então tinha tambor. Confuso, mas intuitivo.
      Apenas o carro dela recém estacionado e mais dois. Estava trancada do lado de fora, ela sabia. Ainda assim continuava andando em direção àquela porta que fica tão perto pela manhã, porém distante demais para a noite. A curva que a levava para a segurança era tão encoberta pelo preto. Dava mais medo arriscar que sentar e esperar alguém salvá-la.
      Muito ela ponderou em um minuto. Esses sessenta segundos em que o atraso mental te deixa estático por tempo suficiente para o mundo dar três voltas e você nem perceber. Com ela não foi diferente. Não era frio, mas ela se sentiu naqueles filmes de terror: o clímax durante a noite chega junto com uma névoa horripilante. Ao visualizar aquela silhueta pouco atraente, ela viu névoa, ela viu o incerto. Estava certa de que ali ela não poderia mais ficar. Parar só faria aquele homem chegar mais rapidamente ao seu encontro. Ela sabia, lá dentro ela sabia que era perigoso. Era uma cilada que deveria ter imaginado antes. Ideia boba sair aquele hora da noite para um lugar como aquele. "Burra! Burra", enquanto repetia tais palavras desanimadoras, caminhava rapidamente.
     Parecia muito, mas não havia andando nem a metade do caminho para chegar à curva arrepiante. "Será que há outro ali?". Pensamento rápido como um relâmpago, relâmpago fraco demais para iluminar o caminho. Continuou. Ela sabia. Se ficasse não teria mais roupas, perderia a dignidade com lágrimas de súplica. Não havia nada para lhe ajudar, nem ninguém para socorrer. Já correndo ela alcançou a curva. Não parecia mais tão assustadora quando se via onde ela levava, à porta que lhe recusava segurança. Bastava o alívio que a porta oferecia, mesmo negligenciando seu propósito. Ela conhecia o que havia dentro, e aquilo acalmava.
      Dez passos além da curva e a curiosidade a traiu como fez a Orfeu. "Como ele pode estar ainda mais perto?". Agora a silhueta trazia detalhes. Cabelos grisalhos, olhos de desejo, um senhor que aparentava algo longe de bonzinho. Apressou o passo, ainda tinha esperanças. Talvez os outros carros indicassem a presença de outras pessoas ali. "E se não houver ninguém?". Seus braços finos e de pouca força não a ajudariam, na verdade, facilitariam o ataque dele. Suas pernas longas ajudavam na fuga, mas até quando poderia correr? Onde seria de fato seguro? Não parecia muito eficiente tal estratégia. Ele se aproximava mesmo com seus maiores esforços.
      Chegava à porta, os pensamentos a mil, as esperanças decrescendo a cada nova conclusão. Ele? Mais perto. Era ali, era ali que iriam sucumbir às suas fraquezas, ele e ela. Jogou-se conta a porta na ilusão de que abriria com bruta força. Havia um trinco, o qual não a trazia qualquer resultado. Sésamo nenhum lhe proveria segurança. Restou-lhe chorar e aceitar seu triste destino. Rezou, pediu aos sete Deuses que saísse viva pelo menos. Olhou para trás, não por curiosidade, não se arriscando, apenas aceitando.
      Ele se aproximava meio ofegante, não tanto quanto ela. Ela chorava mais e mais. Ele a alcançou em menos de 1 segundo e com o pouco de fôlego que lhe restava, disse algo. Algo que ela não escutou, pois seu choro era mais alto. Nem leitura labial era possível fazer, visto que estava cega com tanta água nos olhos. Só quando ele gritou, ela pode compreender:
      - Essas chaves são suas, senhora?


Monday, May 5, 2014

Dual

      Finalmente cheguei naquele momento da vida que todos já se encontraram, ou se encontrarão. Aquele momento que tudo que mais quer fazer é ferir todos os códigos de boa conduta já criados, para esboçar um sorriso. Quando falo "finalmente" parece que eu estava esperando ansiosamente por esse dia, mas não é bem assim que é para soar. Claro, toda adrenalina que esse momento envolve, alimenta minhas veias como a droga de um viciado. É aquela sensação que o Ministério da Saúde adverte que é prejudicial, mas mesmo assim você dá uma tragada nela todos os dias. Qualquer reação adversa que lhe aconteça, o único médico que você pode visitar é seu bom senso, infelizmente ele se ausenta com muita frequência.
      Eu sinto algo tão certo quando eu faço o errado só para desfrutar um pouquinho do teu néctar. Ah, bela flor, me machucaria com vinte mil espinhos se fosse necessário para te dar um cheiro. Todo perigo que adormecia nos meus antigos relacionamento, acorda bem disposto em você. O meu desejo dúbio quanto ao que quero de ti, cria bifurcações eternas em todas as teias dos meus pensamentos. Garantir sua exclusividade ou continuar nessa montanha russa de riscos e alívios?
      Apesar de sentir-me tão vivo com isso tudo, não posso afirmar que é uma coisa boa. Entenda, nem tudo que te faz feliz é fácil de lidar. Eu luto todo dia contra meus instintos para manter alguém que não me pertence por completo tão satisfeita. Você tem seus motivos e eu os meus. Você tem suas vontades e eu as minhas. Prezamos igualmente por liberdade, mesmo não tendo certeza se realmente entendemos esse termo. O que você diz me encanta, me movimenta. Eu acredito na suas palavras como na acuidade da matemática. Se somarmos dois com dois teremos quatro, mas será que se nos somarmos teremos apenas dois?
      Não é da sua verdade que duvido. É na minha mentira que acredito. Tantas vezes já tentei me convencer de que não é amor, portanto temo que agora a mentira dita mil vezes virou real. Não consigo visualizar três anos a frente sem a presença do teu perfume no meu travesseiro, mas também não consigo me comprometer com tal compromisso. Não posso te garantir muito, só o agora. Só o meu medo. Desculpa. Quero apenas que me aceite, e tem o feito. Mas como pode um querer tão certo te deixar tão incerto? Digo que tenho medo de te machucar, medo de embarcar nessa viagem e pular fora antes do destino final. É aí que surge toda piada dessa história. Lá no fundo eu sei, por fora eu finjo esconder. Eu tenho medo que me machuques, que me deixe sozinho navegando os sete mares. Meu orgulho inverte o meu medo e confunde meus sentimentos.
   

Thursday, March 6, 2014

Volta por cima

      Eram passos curtos de tão apertado. Andava com pressa, mesmo que não percorresse longas distâncias em pouco tempo. Não se pode desperdiçar o suor que não tem, nem escancarar o nervosismo insistente. Ela era tão carinhosa e sutil mesmo rejeitando todas as propostas. Compreender como tudo isso era possível, ele não conseguia. Uma rejeição tão doce e calma, enquanto ele estava banhado de gotas ansiosas.
      Em prol de tudo que havia sido vivido ele implorou, mas não disse nada. Pensou em todos os bons momentos, mas não disse nada. Engoliu suas vontades, já que não mudariam a decisão daquela mulher tão menina. Apenas fugiu. Virou as costas para o sonho distante. Com o coração apertando o peito, engoliu também o choro.
      Chegou em casa ofegante, mesmo sem ter feito esforço físico muito pesado, apenas forçou demais a mente. Cenas repassando em sua cabeça reavivavam a memória tão recente. Frases ecoando em seus ouvidos ainda que no silêncio de seu quarto. Ela era frígida, só podia, e o pobre coitado nunca percebeu. Forjou simpatia, paixão. Forjou amor. Tão falsa ela foi, tão falsa ela é. Será que não podia forjar apenas mais uma vez? Só para não destruir um sonho, só desmoronar uma construção. Ele tinha feito tudo sozinho. Não havia pedido ajuda para sonhar, planejar, criar. A única função dela era estar ali, e mesmo assim não o fez. Ele era egoísta por não tê-la incluído no planejamento. Será? Será que ela não deveria participar da construção de um futuro que a envolvia? Será que ela já não estava cansada de não ter escolha?
      - Já sei como vai ser.
      - Ah é? E como vai ser?
      Então ele explicava e nunca a deixava opinar. Ela o olhava e forçava um sorriso. Ao virar para o outro lado, caía uma lágrima.
      Tantas as vezes que isso aconteceu, tantas as vezes que ela implorou para participar. Tantas. Tantos os planos que ela não pode ajudar, tantos os planos que saíram do controle e tiraram ele da calma. E quem levava a culpa? Quem não ajuda a criar, é claro.
      Ela virou pro na arte de fingir e foi o suficiente para dar-lhe tempo de construir seu próprio sonho. O sonho que não o envolvia, o sonho em que ele não podia ajudar a planejar, o sonho em que ela seria a dona do seu futuro, ninguém mais. O sonho de dizer não para ele, de esquecer aquele amor tão sofrido. Ela demorou o tempo necessário, aguentou até o momento perfeito. Foi o dia que ficou para a história dela. Veja bem, "dela" e não "deles". O dia em que ela disse "não" depois de tantos "sim", depois de impacientes "pode ser". Foi o minuto em que toda falsidade sumiu, e o sorriso foi sincero. Foi o momento dela.

Friday, January 10, 2014

Resolução de um novo ano

      Primeiramente devo dizer que já exigi demais e fiz de menos. Deixei bem claro que não faria certas coisas por você, não por ser você, apenas não faria por ninguém. Fere minha personalidade sair por aí fazendo loucuras de amor, anunciando aos sete ventos o que sou ou deixo de ser com você. Não costumo dizer "eu te amo" em datas que não sejam comemorativas, afinal já são tantos dias do ano que o homem tem para expressar o que sente, para que mais?
      Bom, apesar de ter começado com palavras carrancudas como eu, venho por meio delas e das próximas trazer-te retificações.
      A gente já esticou a baladeira do nosso relacionamento ate demais, eu sei. Hoje reconheço seus esforços e percebo seus motivos. Você sempre me amou numa intensidade que em toda minha vida considerei impossível. O que viu em mim, até hoje não sei ao certo, apenas fico feliz que algo tenha te fisgado. Compreendo que agora não é o momento para você. Não tenho te proporcionado momentos bons, na verdade. Portanto estou escrevendo essas palavras de arrependimento. Pode ser tarde demais, mas é melhor do que deixa-las na omissão. Imagino que pode estar machucando ler o que está aqui, mas se chegou até esse ponto, por favor, não pare.
      Nem sei por onde começar todo esse turbilhão de coisas que quero dizer-te. Desculpa e obrigado. Acho que todo resto vai se basear nessas palavras.
      Desculpa por não ter ficado empolgado como você merecia quando conseguiu a promoção naquele emprego que tanto ama, ou ate mesmo quando conseguiu acertar fazer aquele bolo que tentava fazer a meses. Estava delicioso, meu amor. Obrigada por se esforçar tanto para fazer meus pratos favoritos. Nem sempre acerta, mas já fico feliz que tente. Afinal, é tentando que se chega a perfeição, não é? Não sei se o ditado é esse, mas o que vale é a intenção. Desculpa por não ter notado seu novo corte de cabelo, ou seu coração machucado. Obrigado por continuar me aceitando mesmo depois de tantos vacilos. Desculpe todos as noites que não abracei seu corpo com a força necessária para mostrar que nunca quero te deixar ir, porém também na medida perfeita para não te machucar. Obrigado por ter dormido tantas noites ao meu lado sem o calor do meu amor. Bom, queria que eu não tivesse que agradecer por isso, é um dos meus inúmeros vacilos e nunca mais quero te ver consertando minha displicência quanto ao nosso relacionamento. Não sozinha, quero consertar todos os danos contigo.
      Vou te agradecer todos os dias que passares ao meu lado se por ventura decidir me perdoar. Pedirei desculpas sem atrasos, e direi "obrigados" antecipados. Tudo isso pode parecer papo furado. Eu compreenderei se assim pensar, mas, por favor, se pelo menos dois centímetros do seu corpo tiverem vontade de voltar aqui, volta! Preciso te provar que não é da boca pra fora, meu amor. Se não tiver forças, eu te carrego comigo. Se tiver medos, afogo todos eles no fundo do mar. Se tiver dor, me deixa cuidar? Se tiver qualquer algo de ruim contigo, me deixa te dar coisas boas.
      Tenho plena consciência de que tudo isso pode não ter mudado sua decisão. Se for esse o caso, é só dizer, que eu mesmo trato de me mandar embora da tua vida. Mas se você tem duvidas, me deixa entrar novamente. Não fui o marido perfeito, nem serei. No entanto, farei de tudo para sempre tentar te fornecer a perfeição que mereces.
      Desculpa pelo que passou e obrigado pelo agora, ainda que esse agora dure apenas o tempo necessário para terminar de ler essa carta. Já seria mais do que o que eu mereço, mas não te disse todas essas coisas por merecer um recomeço, e sim por achar que você merece um recomeço.

      Obrigado e desculpa, meu amor..

Tuesday, December 17, 2013

4 min

      Essa música me arrepia da ponta dos dedos até o fio de cabelo mais comprido. Dá uma vontade incalculável de sentir tudo aquilo que ele sentiu quando afogou tais palavras nessa melodia. É uma mistura de dor, amor, anseio, carinho... Ah, são tantas coisas em apenas quatro minutos. Tanto pode acontecer em quatro minutos, venho pensando.
      Em quatro minutos duas pessoas podem cruzar seus caminhos várias vezes e não trocarem uma gentileza sequer. Em quatro minutos alguém pode zerar a conta bancária; pode ver um trailer e já odiar o filme; pode fazer um miojo e ainda vai ter um minuto de brinde. Acredite, em quatro minutos um carro pode ser montado, e eu, pobre coitada, perco mais de dez tentando abrir um frasco bem enroscado. Segundo o google, em quatro minutos alguém pode fazer um "geleia gostosa". Em quatro minutos, minha gente, duas pessoas podem se apaixonar; vários beijos podem ser dados. Em quatro minutos pode ser dado o abraço mais demorado da vida de alguém, o mais intenso, ao mesmo tempo o mais rápido. Em quatro minutos e mais alguns segundos eu posso ouvir essa canção e me apaixonar pela ideia de me apaixonar. Em quatro minutos...
      Pergunto-me se as pessoas já se perguntaram o que fariam se tivessem apenas quatro minutos. Quatro minutos para dizerem o que sentem, para defender uma ideia. Duzentos e quarenta segundos, isso mesmo, duzentos e quarenta segundos para se despedir de alguém. Duzentos e quarenta segundos para dizer tudo que quer dizer com o silêncio de um toque. Duzentos e quarenta segundos ao lado de alguém insuportável; achando que vai morrer afogado; aguardando no pronto socorro. Duzentos... e... quarenta... segundos... de pura agonia.
      Em quatro minutos, o que fazes? Toma um banho, escova os dentes, assiste quatro propagandas, pula quarenta e oito delas no youtube? Na verdade, não importa como cada um usa seus quatro, oito, doze, quatrocentos minutos. O importante mesmo é não desperdiçar. A cada quatro minutos, quatro minutos de vida são perdidos, ou ganhos? Só depende de você, não é? Parece aquela história do copo meio cheio ou meio vazio. Pessimista ou otimista, feliz ou triste, atrasado ou pontual, sempre pode nos restar apenas mais quatro minutos.
      Duzentos e quarenta mil milissegundos podem demorar tanto tempo, enquanto quatro minutos podem passar voando. Em duzentos e quarenta segundos meu tempo voou e se arrastou ao mesmo tempo. Escrevi umas dúzias de palavras, umas centenas de repetições. Em apenas quatro minutos, senti tanta vontade de sentir o que há tempos não sinto, recapitulei muito do que já aconteceu. Fechei os olhos e passei alguns anos assim, enquanto meu corpo relaxava por quatro minutos. Foi tanto pouco tempo.
      Foram quatro minutos, enfim, apenas...

Monday, December 9, 2013

Vaivém

      Lascou-me um beijo surpresa na bochecha e fugiu, mas não sem antes olhar para trás, não sem antes me deixar com aquele desconforto nas calças. Eu que não sei ao certo o que causa todo esse transtorno, se é aquele olhar que me come ou aquela boca que me cerca, apenas sei que fico bem fora da minha zona de conforto quando ela emana seu perfume nas minhas proximidades. Mulher menina que me conquista com uma risada e dois tapas; rouba o fio de dignidade que me resta e ainda joga a culpa para cima de mim.
      Eu fui atrás, não me controlei. Sempre perco o controle, não importa em que canal esteja, contanto que ela apareça. Deixa-me uma fera desgovernada, sedenta pelo gosto de seus lábios. Seja em cima, seja em baixo, o sabor da sua confusão me traz um breve momento de quietude. Um breve instante, é tudo que sempre peço, tudo que sempre tenho. Ela anda apressada como se o tempo corresse e não a esperasse. Cada minuto que me presenteia, faz de mim alguém mais, mais... sedento, ainda mais. Debruça seus anseios em meu ser e me deixa de resto mais desejo.
      Quando alcancei, não deixei barato. Ela provoca, eu rebato. Sem medo de gritar, ela se entrega, e eu ganho. A cada encontro fico mais rico, não de dinheiro, é claro. Fico mais completo, e incompleto quando ela não está. Cada pedaço que me falta, ela preenche. Cada alegria, ela me vende. É um jogo contraditório, em que cada vez que pago, mas eu tenho. Rico de satisfação.
      Ela sorriu, porque já sabia. Ela se deixou ser alcançada, como sempre. Sabe bem o que quer e me usa como peão, ou seria escravo? Tanto faz, não importa. Sou parte da jogada e já me é o suficiente. Ela faz com que minha mente caótica faça sentido por quinze, vinte minutos. Apenas para ao fim do tempo, ao soar da sirene, ao suar os corpos, ela instalar um caos maior ainda. Agradeço por toda consideração, toda confusão. Parece ruim, mas não é. Ou é, e eu não sei.
     Agarrei para não mais soltar, do modo como sempre faço. Uma pena que a pele quente dela seja tão escorregadia. Por mais que eu tente, ela sempre dá um jeito de escapulir por entre meus dedos. Derramando-se feito água sobre meu corpo e logo escorrendo pelo ralo. Por mais que eu tente, não consigo segurar aquele espírito livre, aquela ousadia a cada passo, aquela maravilha de se olhar. Dói, mas eu gosto de me perder ali naquele corpo.
      Ela gostou, se aproveitou e, mais uma vez, se foi. Deixou meus trapos no chão, minhas inseguranças também. Juntei os trapos e algumas inseguranças, e fui também. Segui meu caminho, como ela segue o dela. Surtando até o dia de cruzar com ela de novo, e perder mais inseguranças, dignidade, medo. Ela me molha ao mesmo tempo que me seca. Ela é aquela coisa inusitada que acontece com os pobres felizardos. Ganhei na loteria, no entanto o prêmio vem em parcela e deixa dívidas. Sou um pobre feliz.

Sunday, November 17, 2013

Lá e cá

      - Tá vendo aquele casal?
      - Qual?
      - A menina de blusa branca e o cara com a blusa vermelha. Ali. Perto do banheiro.
      - O que tem eles?
      - Ele parece estar louco por ela, mas ela parece tão...
      - Insegura?
      - Não.
      - Desinteressada?
      - Não é bem isso.
      - O que é, então?
      - Perdida, eu acho.
      - Perdida? Como assim?
      - Ele procura os olhos dela, ela encontra os dele, mas ela não parece estar ali.
      - É como se ela olhasse para dentro dela enquanto ele faz o mesmo, não é?
      - Mas... ela está apaixonada por ele.
      - Como você sabe disso? Não parece.
      E então ela calou. Perdeu seu olhar por um momento para tentar não dar dicas do que sentia por ele.
      - Diz. Como você sabe disso?
      - Eu apenas sei - resposta brilhante, não é?
      - Qual é? Eu sei que você tem provas para provar o fato, senhorita detetive.
      A respiração descompassada quase não permitiu que ela respirasse fundo e procurasse pelas palavras para comprovar sua hipótese.
      - Viu como ela fecha os olhos quando ele beija a bochecha dela?
      - Estou, mas isso não quer dizer muita coisa. Pode ser um reflexo.
      - Não. Você não prestou atenção. Ela exprime um leve sorriso quando ele a beija. Num é só um reflexo. Sabe quando você fecha os olhos para sentir melhor o cheiro de alguma coisa? Para ouvir melhor um sussurro?
       - Até que sei.
       - É justamente isso. Aquele beijo é o que ela que sentir melhor, guardar com ela.
       - E por que você disse que ela está "perdida"? - fez as aspas flutuantes com os dedos.
       Ele é tudo que ela queria, mas é tão bobinho. Isso fazia com que ela quisesse ainda mais.
       - Você é meio tapado mesmo - riu, riu para quebrar aquele clima tenso dentro dela. Riu para descontrair.
       E ele riu de volta, quase como quem confirma o que acabou de ser dito.
       - Algo a preocupa.
       - Tipo o que?
       - Ah, sei lá. Sou nem ela ou ele para saber o que se passa.
       - Desculpa aí! Achei que você teria todas as respostas.
       - Sou nem vidente - e era isso que a conquistava. As piadas, as descontrações até nos momentos de seriedade.
       - Achei que fosse! - ele brincou - Mas, sim, isso num quer dizer que ela está apaixonada por ele. Por que parecer tão distante se ela gosta tanto dele?
       - Vai ver ela tem algo para esconder - dessa vez falou baixinho. Porque ela tinha algo para esconder.
       - Oi? O que você disse?
       - Ela deve ter algo para esconder - o olhar dela encontrou o dele.
       - Algo bom ou algo ruim? - ele olhava para ela sem medo de se esconder.
       - Ah, depende do seu ponto de vista, né? - ela queria ser capaz de fugir, mas tinha tanto para ver naqueles olhos tão permissivos.
       - No ponto de vista dele.
       - Acho que não é bom - já não sabia mais de quem estavam falando.
       - E por que você acha isso, ein? - as mãos dele corriam de maneira nervosa pelos fios de cabelo.
       - Porque... - não sabia ao certo o que tinha que responder - se quando ele a beija, - conseguiu desviar o olhar - ela fecha os olhos para guardar o momento em sua mente, - olhou para o casal em questão - mas quando eles se olham, ela não consegue ser aberta como ele...
       - É porque ela tem medo - interrompeu sem pestanejar.
       - Não necessariamente - mais um vez foi fisgada pela confusão daquela conversa tão ambígua - ela pode apenas estar com problemas pessoais.
       - Mas se ela gosta tanto dele, confia tanto nele... ele saberia, não é? - seu olhar ainda fixo nela, procurando os olhos dela.
       - É, suponho que sim - e ela cansou de fugir.
       - Você está com problemas pessoais? - ele indagou com um sorriso desafiador nos lábios.
       - Não, mas o que isso tem a ver? - e ela apenas fingiu não entender por puro medo.
       Ele riu:
       - Posso beijar tua bochecha?