Thursday, April 5, 2012

Incrédulo

      Abandonava cada pedaço de conquista que poderia existir em sua vida assim que podia. Via galhos distorcidos em uma árvore saudável, por isso não a escalava. Vivia na sombra dos que conseguiam chegar ao topo e contentava-se com a ausência de luz em si. Não era completamente escuro, nem inteiramente iluminado, era apenas um meio termo.
      Vivia de incompletos, médios e básicos:
      - Seu café é forte ou fraco?
      - Café.
      - Sua carne é bem ou mal passada?
      - No ponto.
      Não era exigente, nem determinado. Fazia o suficiente para continuar vivendo. Tinha amigos, poucos deles, mas tinha. Morava só em um apartamento pequeno. No banheiro, uma escova de dentes. Na cozinha, um prato, um talher, um copo.
      Vagava por aí à procura de nada e via tudo. Pequenas coisas que olhos famintos e saciados não visualizam. Uma flor sem pétalas vítima de um "bem me quer, mal me quer", um livro provavelmente bom esquecido no banco da praça, uma marca mal lavada de batom na blusa do chefe, a blusa surrada do chefe na secretária. Pouco lhe importava o que notava, não comentava com ninguém, apenas guardava para si.
      Conheceu alguém no ponto de ônibus que lhe pareceu interessante, mas usava meias trocadas com tênis lavados e aquilo lhe pareceu muito contraditório para comentar algo além de:
      - Suas meias não combinam.
      Subir logo em seguida no ônibus que passava com a cara mais indiferente do planeta e perceber que aquela estranha havia ficado para trás, levemente confusa, visivelmente preocupada.
      A garçonete da cafeteria sempre sorria com sua resposta. Sempre mandava seu telefone em um guardanapo enquanto entregava o pedido e olhava ansiosa ao disponibilizar a conta. Mesmo preço toda segunda e quinta, mesma gorjeta, mesmo celular que nunca recebia ligações daquele cliente.
      Expressava pouca opinião em assuntos polêmicos, preferia ouvir o que os outros tinham a dizer. Era um homem de poucas palavras, poucas atitudes, poucos reflexos. Taciturno, atraente, apático.
      Esbarrou em uma comprometida com a aliança na mão direita. Era um desligado que notava os detalhes.
      - Desculpe-me.
      Os lábios vermelho-sangue contorceram-se em um sorriso:
      - Sem problema.
      Já ele forçou um sorriso para retribuir. Continuou seu caminho para o bar enquanto ela saía com três canecas de chopp. Pediu sua água usual e voltou para a mesa dos seus amigos.
      Dois homens que reclamavam da solterice, mas o melhor elogio que conseguiam dizer para uma mulher era o quanto a blusa que ela usava era bonita quando olhavam para os seios fartos indiscretamente.
      Gostava daqueles idiotas, mesmo sendo tão diferente. Achava divertido a maneira como eles falavam do sexo oposto. Nunca discordava ou concordava, apenas sorria dos comentários de baixo calão.
      - Por que você não pegou o telefone daquela gostosinha que você esbarrou?
      - Não vale a pena.
      - Como não? Peitos no lugar, bunda grande. Eu comia.
      - Comprometida.
      - Não tenho ciúmes.
      Risadas altas daquela velha piada. Ele apenas ignorou a comédia velha e sem graça, quase tão sem graça quanto o comediante que estava no palco contando piadas mais velhas que aquela vovó surda que sempre perde a dentadura.
      Olhou em volta. Todos do bar riam daquelas piadas de livro de criança, menos a garota da aliança. Apenas olhava para suas amigas e fingia gostar daquele homem no palco tanto quanto elas. Ele viu a falsidade das poucas risadas dela e aquilo lhe chamou atenção.
      Quantas vezes ele havia visto olhos castanhos tão gélidos? Quantas vezes cabelos loiros eram tingidos de preto? Ela parecia querer fugir daquilo que todos gostavam. Bebia cerveja em um bar tentando esconder a cara feia em cada gole, tentava manter-se focada nas conversas de suas amigas, pouco falava, mas quando falava parecia demonstrar tanta maturidade, tanto conhecimento, que suas amigas silenciavam por algum tempo pensando "isso é tão óbvio, como não pensei isso antes?".
      E aí ele sonhou com uma casa menos vazia, um banheiro com duas toalhas, uma cozinha com velas na mesa. Viu uma aliança em seu dedo, um batom vermelho-sangue em sua camisa. Sonho simples para a maioria das pessoas, mas algo muito fora do comum para ele.
      Voltou à realidade. Aparentemente não havia perdido muito nos poucos segundos que foi longe em pensamento. Até que olhou para o lado e seu sonho não estava mais sentado à mesa. Deu de ombros e foi como se nada de extraordinário tivesse acontecido naquela noite. Mal sabia ele que aquilo logo seria além do ordinário...

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