Monday, September 5, 2011

Carta à donzela

" Caro amigo, Sei que não deveria eu estar expondo meu coração em uma carta dirigida a tua pessoa. Apenas o faço porque és a única pessoa além dela em quem confio essas palavras. Escrever-te-ei tudo que me atormenta por agora, tudo em relação a ela. Peço-te que leia e que se necessário diga a ela que tudo isso é verdade, se um dia ela duvidar. Certamente, aquela noite foi fora do comum para um guerreiro como eu. Havia retornado de meses de batalha e encontrava-me em um baile feito especialmente para comemorar minha chegada. Estava desgostoso, pois a luta, que eu tanto gostava, havia me deixado cicatrizes irreparáveis. Olhares surpresos voltados para mim, eu estava vivo! Em meio a tanto espanto pude reparar um sorriso acolhedor. Não estava muito distante. A garota que não me enxergava era visível aos olhos de todos os que passavam, e não perecia se importar muito com tal atenção. O reconhecimento foi instantâneo. "Já vi esse sorriso antes", então pensei. De fato aquele lábios contorcidos levemente em forma de U já haviam cruzado o meu caminho. Pouco antes de uma batalha, aquela alegria contagiante passou despercebida com tanta adrenalina que me tomava. Contei as aventuras que percorreram minha história, as mortes que deixei, as pessoas que salvei. Seu interesse medíocre em meus relatos encantou-me ainda mais. Sem hesitação, investi naquilo que parecia ser impossível. Ela hesitou. Não cabia a uma dama como ela aventuras como as minhas. Viver uma noite com um bravo guerreiro em troca de que? Um escudo para se gabar para as outras donzelas depois? Com a convicção de que uma garota como aquela não poderia ocupar apenas uma noite de minha jornada, a convenci de que poderíamos ser muito mais que isso. Seu consentimento foi difícil de alcançar, no entanto minha persuasão estava mais evidente do que nunca. A menina de olhos bonitos e respostas rápidas surpreendeu-me mais do que eu havia surpreendido aquelas pessoas com a constatação de minha sobrevivência. Rapidamente compreendi que tinha em meus braços uma raridade, a qual não podia perder. Como prometido, a noite não foi única. Nos dias eu havia de cumprir com algumas obrigações, e ela com as dela. Nas noites trocávamos opiniões, ideias, carícias. O dia me rendia saudade, a noite trazia-me admiração. Segundos extensos ao lado dela provavam-me o quão especial alguém podia ser. Além de surpreendente, era difícil, teimosa, e lutava sempre na defesa. Facilmente despia minhas verdades, porém ao chegar sua hora de mostrar-se por inteira, desdobrava desculpas e escondia mais profundamente o que ninguém sabia. Eu, como um bom guerreiro, não desisti da luta facilmente. Não me dei por vencido até conseguir arrancar um pouco de sinceridade daqueles olhos. Ela derrubou algumas de suas inibições, desmoronou todas as suas barreiras. Ela confiou em tudo que eu disse ser, em tudo que prometi servir. A vi tão nua quanto as árvores no outono, tão transparente quanto as águas límpidas de cada pequeno riacho. Ela era ela quando estava comigo. Não inventava personagens ou máscaras. Confesso que fui por demasiado inteligente ao conquistar tanto espaço naqueles pensamentos infinitos que, segundo sua voz me disse, eu era o único a entender todos tão bem. A esperteza dela, por muitas estações, ultrapassava minha persistência. Pois ao mesmo tempo que lidava com as próprias confusões, conseguia descomplicar as minhas. Entendia muito bem minha fervorosa paixão pelas batalhas e implorou pelo nosso amor que eu nunca mais viajasse com esse intuito. A priore, confesso que enlouqueci com tal pedido. Como ela, que dizia me amar, queria que eu deixasse de fazer tudo que mais gostava? Mesmo sem concordar, assenti. No entanto, algum tempo depois já encontrava-me tentado a pisar em um campo de luta, a sacar minha espada reluzente e usar com destreza meu escudo. Logo, estava eu traindo a promessa que a havia feito. Parti o coração de quem mais queria zelar. Inundei de lágrimas o único rosto que gostava de tocar. Fiz gritar a boca que amava beijar. Amigo, se arrependimento matasse, não tenha dúvidas, seria mais doloroso do que ter o corpo esquartejado em uma luta. Demorei-me um pouco para perceber que tudo aquilo que ela me fez prometer foi por carinho, preocupação e para provar do quanto me amava. E como me amava. Entendo agora que o coração apaixonado não suportaria ver o amor de sua vida voltar com um pedaço a menos de cada jornada. Da mesma forma que eu não gostaria que ela voltasse com uma atitude mais apagada de cada chá que tomava com as amigas. Odiaria vê-la voltar com opiniões cada vez mais superficiais de cada reunião de intelectuais. Ela era feita disso. Era destemida, atrevida, engraçada, inteligente. E se cada uma dessas características fossem sumindo daquela alma, meu amor iria sumir também. O que a tornava tão diferente de todas as outras era a personalidade que levava consigo. Eu amo aquela personalidade. Eu errei. Confesso que errei e muito. Estou sendo covarde em estar endereçando essas confissões a você, no entanto não creio que depois do que fiz tenho coragem de explanar tais coisas àquela que tem meu coração nas mãos, àquela que fiz sofrer mais do que qualquer um podia. Sinto muito se obriguei-te a ler minhas melancolias, mas não podia guardar tudo isso no meu peito. Não mais. Obrigado por ter me apoiado na decisão que tomei mesmo sabendo que iria me arrepender profundamente. És muito inteligente em ter feito isso. Eu precisava errar sozinho para aprender sozinho. Eu ainda a amo. Desfiz-me da adrenalina de lutar. Nada mais é tão bom quanto o amor que ela fornecia para mim. Distanciei-me de tudo e todos, pois, como já disse, sou covarde. Sei que ela não me aceitará mais e não quero que doa mais do que já está doendo. O arrependimento já transformou meu coração em pó, e negação dela a minha volta seria como um furacão levando esse pó. Enfim tudo, ou pelo menos boa parte, do que me aflige está descrito nessas palavras mal grafadas. Agradeço-te mais uma vez por ser esse amigo fiel que és. Obrigado! Com dor, Guerreiro."
Seu amigo foi gentil o suficiente para fornecer-me a carta e nada doeu-me tanto do que ler essas confissões. Ele ainda me amava, ele equivocou-se. Mesmo quando partiu sem explicações não foi tão devastador quanto ler essas palavras escritas a sangue e lágrimas. Ele ainda me ama. Como pode sumir assim? Como pode perceber que o arrependimento batia a porta e não ter lutado por nós? Era o melhor guerreiro, no entanto não cumpriu com sua fama quando o campo de batalha era o amor e o inimigo era a covardia. O que mais me dói é saber que ele desistiu por medo e não que ele fugiu por um mero impulso.

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